A digitalização do dinheiro levanta uma série de dúvidas, uma vez que cada transação se torna um dado rastreável O Banco Central Europeu (BCE) avança com passos firmes para uma nova era monetária: a do euro digital, uma versão eletrónica do dinheiro que poderá transformar a forma como milhões de europeus pagam, poupam e realizam transações diárias. Embora ainda não exista uma data definitiva para o seu lançamento, o projeto já se encontra em fase de preparação e promete ser uma das mudanças financeiras mais significativas desde a introdução do euro em 2002. O euro digital promete modernizar a economia da zona euro e oferecer um meio de pagamento público na era digital. No entanto, a digitalização do dinheiro levanta uma questão fundamental: ao tornar cada transação um dado rastreável, até que ponto o uso de algoritmos de inteligência artificial, em particular de machine learning, poderia transformar o dinheiro num instrumento de controlo político?
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«O dinheiro deve evoluir com a tecnologia», afirmam no BCE. Num contexto em que os pagamentos digitais dominam o consumo, o banco central quer garantir que os europeus continuem a ter acesso a uma forma de dinheiro público, segura e universal. O sistema seria articulado através de uma carteira digital oficial, gerida por bancos ou intermediários autorizados, onde cada utilizador poderia armazenar e utilizar euros digitais. O BCE prevê que a experiência seja tão simples como pagar com um cartão ou aplicação móvel, mas com uma diferença fundamental: o apoio direto do banco central.

Além disso, está a ser estudada a possibilidade de habilitar pagamentos sem ligação, uma característica que tornaria o euro digital um substituto quase perfeito do dinheiro físico, uma vez que poderia ser utilizado mesmo sem acesso à Internet. Desde novembro de 2023, o BCE entrou na chamada fase de preparação, destinada a definir os aspetos técnicos, regulamentares e de design da futura moeda digital. Isso inclui garantir a privacidade dos utilizadores, a segurança das transações e a interoperabilidade com os sistemas financeiros existentes. O BCE insiste que ainda não foi tomada uma decisão final sobre a sua emissão. O projeto poderá avançar para uma fase de implementação plena nos próximos anos, uma vez concluídos os testes e as consultas públicas.
O euro digital representa um salto qualitativo na história monetária europeia, comparável à própria criação do euro físico. Com ele, o BCE procura oferecer aos cidadãos uma alternativa moderna, segura e acessível para a era digital, sem perder os princípios de estabilidade e confiança que caracterizam o dinheiro do banco central. Num continente onde o uso de dinheiro físico diminui ano após ano, o euro digital pode tornar-se a porta de entrada para um novo sistema financeiro europeu, mais autónomo, resiliente e preparado para o futuro.
O euro digital irá gerar uma quantidade massiva de dados financeiros: hábitos de consumo, frequência de pagamentos, localização, horários de transação e relações entre agentes económicos. Embora o BCE tenha prometido anonimato parcial e «privacidade por design», a infraestrutura técnica do sistema exigirá a recolha e o processamento de metadados para fins de segurança, rastreabilidade e política monetária. Os algoritmos de aprendizagem automática têm a capacidade de segmentar perfis financeiros com alta precisão. São capazes de identificar padrões complexos: quais setores da população mostram maior propensão à poupança ou como o consumo varia diante de estímulos fiscais e monetários, entre outros. Se implementados sobre os dados gerados por um sistema de euro digital centralizado, esses modelos poderiam fornecer ao Estado e às autoridades financeiras uma visão integral praticamente em tempo real.
A diferença fundamental está em quem controla os dados. A primeira grande preocupação não é técnica, mas política: quem deve ter o poder sobre a informação que gera o dinheiro? Quando um consumidor usa Visa, Mastercard, PayPal ou qualquer outra aplicação bancária, os seus dados passam por empresas privadas que os processam para fins comerciais: segmentação publicitária, prevenção de fraudes ou análise de hábitos de consumo. São atores com interesses económicos, mas sem autoridade legal sobre a pessoa.
O caso do euro digital seria diferente. Neste sistema, o BCE e os bancos centrais nacionais teriam, direta ou indiretamente, acesso à rastreabilidade dos pagamentos dos cidadãos. Embora o banco central garanta que não irá gerir dados pessoais, o simples facto de uma instituição pública poder observar, ou potencialmente observar, todos os fluxos monetários gera inquietação. O debate, portanto, não é meramente tecnológico, mas político e ético: «Queremos que o dinheiro se torne também uma ferramenta de supervisão pública?».

O grau de rastreabilidade também é motivo de debate. O BCE prometeu que o euro digital garantirá «um alto nível de privacidade», embora sem oferecer anonimato total. Enquanto o dinheiro em espécie desaparece sem deixar rasto, todas as transações digitais deixam um rasto. Essa diferença, aparentemente técnica, muda completamente a natureza do dinheiro. Num modelo centralizado, o BCE poderia ver quem paga, quanto e a quem.
Os críticos temem que, mesmo que o projeto comece com uma abordagem respeitosa da privacidade, o seu desenho estrutural permita um maior controlo futuro, dependendo de decisões políticas. O receio não é o que o BCE fará hoje, mas o que poderá fazer amanhã. A preocupação não surge do nada. O yuan digital da China já funciona como um sistema em que o Estado pode observar em tempo real os fluxos de dinheiro de milhões de utilizadores. Este precedente despertou preocupação na Europa: embora os modelos de governo sejam diferentes, a capacidade técnica de vigilância financeira é, em teoria, a mesma. Alguns analistas apontam cenários hipotéticos, mas plausíveis: monitorização de padrões de consumo para fins fiscais, impostos automáticos aplicados diretamente às transações ou bloqueio e condicionamento de pagamentos por sanções ou regulamentos específicos. O BCE tem sido enfático em negar que esse seja o seu objetivo. No entanto, os analistas mais céticos alertam que «o problema não é a intenção, mas a possibilidade». Uma infraestrutura monetária centralizada permitiria, se assim fosse decidido, uma supervisão sem precedentes na história económica moderna.
