Descoberta no Canadá: a análise genómica de dois dentes fósseis muda o que sabíamos sobre os mamutes e revela cruzamentos entre espécies durante 15.000 anos

Dois dentes fossilizados revelaram uma história oculta de hibridização entre mamutes que durou milhares de anos e mudou para sempre a história evolutiva do continente americano.

Durante décadas, os paleontólogos classificaram os mamutes norte-americanos em duas espécies principais: o mamute lanudo, adaptado ao frio extremo das regiões árticas do Canadá e da Sibéria, e o colombino, maior e menos peludo, que percorria as planícies quentes do sul dos Estados Unidos e do México. A separação entre os dois parecia clara, marcada por diferenças de habitat, morfologia e comportamento. Mas um novo estudo, publicado na Biology Letters e liderado por Marianne Dehasque e sua equipa, mudou completamente essa narrativa.

Graças à análise genómica de dois molares fósseis encontrados na Colúmbia Britânica, os investigadores demonstraram que esses mamutes não apenas coexistiram, mas se cruzaram repetidamente durante milhares de anos. A descoberta revela um longo episódio de hibridização que ocorreu durante o Pleistoceno tardio, reconfigurando a história evolutiva desses gigantes e sugerindo que a mistura de espécies era muito mais comum do que se pensava.

Dois dentes, milhares de anos de história

Tudo começou com a descoberta de dois dentes fósseis — um no lago Okanagan e outro no lago Babine — datados de aproximadamente 25.000 e 36.000 anos antes do presente, respetivamente. À primeira vista, os molares pareciam típicos do mamute-lanudo: uma estrutura dentária adaptada às pastagens duras e geladas das estepes do norte. No entanto, as aparências enganam.

Quando os cientistas sequenciaram o ADN extraído desses restos, descobriram algo inesperado. Ambos os espécimes apresentavam níveis significativos de ascendência do mamute colombino. O mais antigo tinha cerca de 22% de genes colombinos, enquanto o mais recente atingia quase 35%. Isso implica que os cruzamentos entre as duas espécies não foram eventos isolados, mas parte de uma história evolutiva contínua e sustentada ao longo do tempo.

O estudo não só demonstrou a existência de híbridos, mas também a sua importância em termos evolutivos: estes mamutes híbridos apresentavam uma diversidade genética superior à dos seus parentes siberianos. Essa variabilidade pode ter-lhes conferido vantagens adaptativas face às drásticas mudanças climáticas que marcaram a transição entre as glaciações.

O estudo de Dehasque e seus colegas faz parte de uma linha de investigação iniciada em 2021, quando foi sequenciado pela primeira vez o ADN de um mamute da linhagem Krestovka, com cerca de 1,2 milhões de anos. Esta espécie, diferente da linhagem tradicional dos mamutes das estepes, revelou-se um dos progenitores do mamute colombino. Já nessa altura, os cientistas perceberam que a evolução dos mamutes era muito mais complexa do que uma simples árvore genealógica com ramos separados.

O que agora se confirma é que a hibridação não terminou com o aparecimento do mamute colombino. Durante milhares de anos, houve um vaivém genético entre as espécies. O ADN nuclear revela um fluxo bidirecional, embora com uma peculiaridade: a maior parte da troca foi de machos colombinos para fêmeas peludas. Esta assimetria explica-se porque o ADN mitocondrial — que é transmitido apenas pela via materna — dos híbridos pertence exclusivamente aos mamutes peludos.

O papel da hibridização na evolução

A ideia de que espécies diferentes podem produzir descendentes férteis não é nova, mas tem sido tradicionalmente considerada uma exceção. Na era da genómica, no entanto, esse paradigma está a vacilar. O caso dos mamutes reforça a noção de que a hibridização pode ser uma força evolutiva fundamental, capaz de gerar novas combinações genéticas com valor adaptativo.

Nesse sentido, os mamutes se juntam a uma lista crescente de animais pré-históricos — e atuais — que evoluíram graças à mistura entre linhagens. Já foram documentados casos semelhantes em ursos polares e pardos, leões e até mesmo humanos modernos com neandertais. O padrão é claro: quando as condições climáticas mudam e as áreas geográficas são alteradas, as espécies se encontram e, em muitos casos, se cruzam.

O fascinante da descoberta na Colúmbia Britânica é que esses híbridos não mostravam sinais evidentes de mestiçagem em sua morfologia. Os seus dentes conservavam as características do mamute-lanudo, o que indica que a seleção natural favoreceu as características mais bem adaptadas às estepes frias, independentemente da origem genética do indivíduo. Em contrapartida, os híbridos mais meridionais provavelmente conservaram dentes mais generalistas, típicos do colombino, adequados a uma dieta mais variada.

Uma lição para o presente (e o futuro)

Estudar os mamutes não é apenas uma janela para o passado, mas também uma ferramenta para compreender os desafios do presente. A hibridização como resposta às alterações climáticas tem implicações diretas para a conservação das espécies modernas. Animais como o lince ibérico, o gato montês escocês ou mesmo os elefantes atuais poderiam beneficiar-se — ou ser ameaçados — pela mistura com espécies afins. Compreender como esse processo ocorreu nos mamutes pode ajudar-nos a antecipar as consequências ecológicas da hibridização em tempos de crise ambiental.

Este trabalho é, em definitiva, um aviso científico sobre os limites das classificações taxonómicas. Muitas vezes, a natureza não se ajusta às nossas definições. Os mamutes não eram simplesmente «peludos» ou «colombinos»: faziam parte de um continuum evolutivo moldado pelo clima, pela geografia e pela interação constante entre populações.

Embora o estudo se baseie em apenas dois fósseis, o seu impacto é enorme. Revela uma complexidade biológica inesperada numa das espécies mais emblemáticas do Pleistoceno e deixa claro que ainda há muito a descobrir sobre o mundo dos mamutes. Os investigadores planeiam agora alargar a sua amostragem a outras regiões da América do Norte, onde poderão encontrar mais evidências destes híbridos esquecidos.

Isso significa que existiu uma terceira espécie de mamute na América do Norte? Por enquanto, não se pode afirmar com certeza. Mas o que sabemos é que a evolução dos mamutes não foi linear nem simples. Foi uma dança milenar entre espécies, impulsionada pelo clima e pela necessidade de sobrevivência. E essa história, escrita nos genes, está apenas a começar a ser contada.

Alisia Pereira/ author of the article

Escrevo artigos, partilho ideias simples que tornam a vida mais fácil.

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