A NASA detecta o aparecimento de uma assimetria desde 2020 entre os dois hemisférios entre a radiação solar que recebem e a que refletem. Com dados dos últimos 24 anos, os satélites da NASA detectaram que a Terra está a escurecer. Por várias razões, todas de origem humana, o planeta reflete menos radiação solar do que refletia no passado. Mas também observaram que o hemisfério norte está a escurecer mais do que o sul do equador. Se os resultados desta investigação publicada na segunda-feira na revista PNAS forem confirmados, a simetria que existia entre os dois hemisférios seria quebrada. Isso poderia ter consequências de longo alcance no sistema climático terrestre, que se baseia na redistribuição das diferenças de calor ou energia que alimentam a circulação atmosférica e oceânica.
As camadas superiores da atmosfera de cada hemisfério recebem a mesma quantidade média anual de raios solares. Em 1971, com os dados da primeira geração de satélites, descobriu-se que um terço dessa radiação incidente é refletida pelas nuvens, aerossóis e pela própria superfície (mais pelo gelo do que pela água e pela terra). É o que se conhece como efeito albedo, e o brilho da neve recém-caída serve para explicar o que é. Metade é absorvida por essa mesma superfície, especialmente os oceanos. E o restante é capturado pela atmosfera. Então, também se viu que ambos os hemisférios têm o mesmo albedo. Isso desconcertou os cientistas: no norte há mais massa continental do que no sul, onde predomina a água, pelo que este deveria reter mais radiação. Assim, outros fatores, como as nuvens, a maior poluição atmosférica, uma possível diferença na vaporização da água, igualariam o norte e o sul. Mas esse equilíbrio está a ser quebrado e o hemisfério norte está a escurecer há alguns anos.
“É o resultado de mudanças nas concentrações de aerossóis, na cobertura de neve e gelo e na quantidade de vapor de água”, diz Norman G. Loeb, do Centro de Investigação Langley da NASA e coautor do estudo. Loeb é o principal investigador do projeto CERES, também da agência espacial norte-americana. Lançado no início do século, ele se baseia em um instrumento que registra tanto a radiação incidente quanto a parte que é refletida pela atmosfera ou que é emitida pela superfície na forma de calor. De acordo com os dados do CERES, já implantado em uma dezena de satélites, o efeito albedo está diminuindo em ambos os hemisférios, mas no norte o escurecimento é mais profundo e acelerado.
«Destaca-se a diminuição dos aerossóis no hemisfério norte devido à redução da poluição na China, nos Estados Unidos e na Europa», lembra Loeb. Durante os séculos XIX e XX, os países do norte, protagonistas da Revolução Industrial, da urbanização e da revolução dos transportes, emitiram enormes quantidades de partículas para a atmosfera. Outra mudança que o cientista da NASA destaca é “o aumento do derretimento da neve e do gelo, que foi mais rápido no hemisfério norte do que no sul”. Por várias razões e processos, o degelo é mais acentuado no Ártico. O gelo marinho derretido perde duplamente o albedo: deixa de refletir a radiação solar que, em seu lugar, a água do mar captura. A Antártida também perde gelo, mas a um ritmo muito menor, e o grande continente gelado continua a conservar o mesmo albedo.
O resultado destas observações é um desequilíbrio na balança da radiação terrestre. Até à era CERES, o hemisfério sul ganhava energia nas camadas superiores da atmosfera, enquanto se produzia uma perda líquida no norte. Os cientistas sustentavam que o diferencial era compensado pela circulação oceânica (as grandes correntes marítimas) e atmosférica. Aqui, as nuvens desempenhavam um papel fundamental a favor do equilíbrio que estaria a ser quebrado nos últimos anos: nos primeiros cinco anos, com dados do CERES, o sul continuava a capturar mais radiação, com um extra de 0,20 watts por metro quadrado e década (W/m²). Mas, desde 2020, a situação inverteu-se, e o norte agora captura 0,54 W/m² a mais a cada década. Portanto, o aquecimento, embora global, é maior no norte.
Será preciso esperar anos, talvez décadas, para ver se o sistema é capaz de se reajustar e recuperar o equilíbrio hemisférico do albedo, mas Loeb acredita que «isso afetará a circulação geral da atmosfera e o clima regional». Já foram observadas mudanças nas precipitações, uma desaceleração na circulação da principal corrente oceânica e até mesmo um deslocamento para o norte da chamada Zona de Convergência Intertropical, uma faixa ao redor do equador onde convergem os ventos alísios de ambos os hemisférios.
A imagem foi elaborada com dados do albedo, ou quantidade de radiação emitida pela Terra para o espaço, obtidos por uma das primeiras missões CERES. Os tons azuis mostram áreas com albedo reduzido. As partes nubladas ou com gelo refletem mais radiação.Imagem cortesia da CERES Science Team/NASA Langley Research Center
Para o professor de meteorologia e geofísica da Universidade de Viena, Aiko Voigt, que não participou neste trabalho, trata-se de «uma análise excelente, e Norman Loeb é uma das figuras mundiais mais importantes na medição do balanço energético terrestre». Voigt lembra que “as observações por satélite realizadas desde a década de 1960 têm demonstrado repetidamente que ambos os hemisférios refletem a mesma quantidade de luz solar (ou seja, a simetria do albedo)”.
Mas o trabalho de Loeb mostra que algo está a mudar. «Estamos a começar a observar que o hemisfério norte reflete menos do que o hemisfério sul, pelo que a simetria parece desaparecer», destaca Voigt. No entanto, ele também quer lembrar que, como reconhecem os próprios autores, será necessário mais do que algumas décadas para confirmar isso: “O trabalho não pode demonstrar a inexistência do princípio da simetria, uma vez que as nuvens poderiam mudar para restabelecê-lo em escalas temporais superiores a alguns anos”. Para o professor da Universidade de Viena, essa simetria é uma propriedade intrigante do sistema climático global. «Não sabemos se ela deveria estar lá e se limita o clima, mas a ideia de que o faz é fascinante e estimulante». Agora surge esta investigação que mostraria o que está a ser perdido. «Mas precisaremos de mais anos para verificar se ela não pode ser restabelecida por meio de algum mecanismo (desconhecido?), ou quão grande pode ser a assimetria», conclui Voigt.
Para o professor da Universidade de Girona Josep Calbó, “o interessante é que uma propriedade da Terra, que ainda não é bem compreendida, parece estar a transformar-se, se as tendências mencionadas pelos autores no artigo forem verdadeiras”. Para Calbó, especialista em radiação atmosférica e nas interações entre esta, a nebulosidade e os aerossóis, trata-se, provavelmente, de mais um sintoma das alterações climáticas, que afetam a circulação global e podem quebrar a simetria no albedo. Mas, tal como Voigt, ele pede prudência: «Parece-me bastante especulativo, com apenas 20 anos de dados e grandes incertezas».